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A partir da esquerda, Teresa Cristina, Diogo Nogueira, Arlindo Cruz (morto em agosto deste ano), Zeca Pagodinho, Mumuzinho, Duzão (Menos é Mais), Karinah, Pretinho da Serrinha

Samba e pagode se renovam, conquistando os jovens, e voltam a ocupar o topo no streaming e no rádio

por_Kamille Viola do_Rio

A partir da esquerda, Teresa Cristina, Diogo Nogueira, Arlindo Cruz (morto em agosto deste ano), Zeca Pagodinho, Mumuzinho, Duzão (Menos é Mais), Karinah, Pretinho da Serrinha
Samba e pagode se renovam, conquistando os jovens, e voltam a ocupar o topo no streaming e no rádio

por_Kamille Viola do_Rio

Em 2025, o pagode se tornou o gênero mais ouvido no Brasil, na soma de rádio e streaming, superando o sertanejo após anos de domínio. Ele e o samba — do qual se origina — vêm quebrando barreiras, acumulando execuções nas plataformas digitais e ocupando espaço na programação cultural país afora, seja integrando o line-up de grandes festivais (até o Rock in Rio, o maior do país, se rendeu), seja em eventos dedicados exclusivamente a esses estilos musicais, que atraem multidões. Para se ter uma ideia, só na capital do Rio de Janeiro, de acordo com o Mapa das Rodas de Samba, levantamento realizado pela prefeitura divulgado em novembro de 2024, existem 150 rodas em espaços públicos — um aumento de 55 em relação à listagem anterior, feita em 2021

Neste mês de dezembro, o Spotify revelou que o Menos é Mais, um dos mais bem-sucedidos grupos de pagode das últimas décadas, foi o segundo nome mais popular da plataforma no Brasil este ano. Também agora em dezembro, o Prêmio UBC 2025 homenageia um ícone do samba e do pagode, Zeca Pagodinho. Do alto de seus mais de 40 anos de trajetória artística, ele observa que, em comparação ao início de sua carreira, esses gêneros se profissionalizaram muito.

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Noel Rosa, um mestre do samba de todos os tempos, dá passagem a talentos que renovam o gênero

“No meu tempo, a gente levava como diversão. Todo mundo tinha emprego. Fim de semana e quarta-feira à noite, no Cacique, a gente se distraía; e, às dez e meia, estava todo mundo indo embora, tinha que trabalhar no outro dia”, lembra o ídolo. “Cantar samba, fazer samba era ‘coisa de vagabundo’. Meu pai e minha mãe diziam: ‘Isso não vai a lugar nenhum.’ Hoje eu tenho dois sobrinhos na música. Todo mundo quer ser sambista”, analisa ele, que celebra o dueto com o neto Noah, de 15 anos, em “Fé e Esperança”, lançada há três meses. “Ele canta legal, está estudando violão, toca piano, ele é muito musical”, derrete-se.

REDES SOCIAIS: PAPEL CENTRAL

Um dos motivos para essa ótima fase foi a chegada de uma nova geração de artistas aos dois estilos musicais, ajudando a mudar suas imagens. “Eles conseguiram trazer um frescor sonoro e visual, sem perder a essência dos gêneros. Isso parece tê-los conectado com esse público novo”, analisa Camila Arias, gerente de marketing da Warner Music Brasil. “As redes sociais tiveram um papel praticamente central para essa transformação. Elas permitiram que o público visse o pagode e o samba de um jeito mais contemporâneo, mais novo, mais ligado a moda, comportamento, estilo de vida”, observa.

Entre as estratégias para atrair a audiência jovem, estão versões menores pensadas para viralizar no TikTok e no Instagram ou trends (tendências), como vídeos com danças ou de humor. O resultado é que uma faixa etária que antes não consumia esses estilos agora está interessada neles, o que pode ser visto em dados em plataformas como YouTube, Spotify, Deezer e até o aplicativo Shazam, utilizado para identificar a música que está tocando no ambiente. “A gente consegue analisar que eles estão usando mais o app com músicas de samba e pagode exatamente por estarem em locais onde esses estilos tocam, como festas e bares. É uma coisa que se retroalimenta”, pontua Camila Arias.

Para Diogo Nogueira, o fato de o país estar em um momento de mais consciência social também contribui para que o público se interesse mais pela batucada. “Estamos numa crescente valorização da cultura brasileira, legitimando nossas raízes. Já não pode mais não ter a essência da música brasileira presente em eventos de relevância”, reflete o sambista. “Nos últimos três anos, eu e minha equipe fizemos um trabalho para chegar a um público mais jovem, e surtiu muito efeito. Fiquei muito feliz de ver uma galera nova chegando, de ver os amigos do meu filho se aproximando do meu trabalho”, comemora.

MAIS REPRESENTATIVIDADE

Na esteira dos debates sobre representatividade, os dois ritmos viram um crescimento do protagonismo feminino. A cantora Karinah, que começou no samba e, depois, enveredou pelo pagode, conta que, quando decidiu apostar no gênero — ela gravou em 2014 o pagode “Nunca é Tarde”, mas passou a apostar mesmo no ritmo depois de lançar “Medo de Amor”, em 2019 —, tinha uma única referência feminina dos anos 1990: a cantora Adryana Ribeiro, do grupo Adryana e a Rapaziada, que fez sucesso no fim daquela década. Por isso, em 2022, resolveu gravar o audiovisual “Karinah Por Elas”, disponível no GloboPlay, apresentando 27 vozes femininas.

“Hoje a gente vê mulheres, como Marvvila, Ana Clara, Grupo Entre Elas, Gica, construindo seus espaços nesse mercado tão difícil, tão avassalador, mas que já está com outro olhar para as mulheres”, celebra a artista, que contou, ela própria, com alguns empurrões de respeito. Um deles foi da cantora Alcione, ao lado de quem fez 33 shows. “Cantei com ela Brasilzão afora, uma generosidade sem tamanho de uma intérprete maravilhosa da música brasileira”, derrete-se.

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Pixinguinha: referência sempre presente
Pixinguinha: referência sempre presente

O outro veio de Zeca Pagodinho, que assina a direção artística do álbum mais recente da cantora, “Meu Samba”, lançado em maio, além de dividir os vocais com ela em uma das faixas, “Foi um Sonho”. “Ele falou para mim que era uma forma de devolver um pouco do que a Beth Carvalho, que era uma mulher, fez por ele”, conta Karinah.

Chamada de madrinha do samba por uma série de artistas do gênero, Beth foi responsável por impulsionar as carreiras de sambistas do quilate de Zeca, Arlindo Cruz e Fundo de Quintal, descobertos por ela, além de bambas como Cartola e Nelson Cavaquinho, que ganharam novo fôlego em suas carreiras com a ajuda da intérprete.

Os avanços no debate sobre a questão racial também ajudaram a lançar um novo olhar sobre o samba e, principalmente, sobre o pagode, duramente criticado pela imprensa na década de 1990, quando era acusado de desvirtuar o samba — afinal, havia incorporado instrumentos que não eram tradicionais do gênero, como teclado, guitarra, baixo e bateria, e apostava em letras açucaradas — e de ser um ritmo puramente comercial. No entanto, alguns de seus grandes nomes e sucessos resistiram à prova do tempo, tornando-se clássicos. Belo, Alexandre Pires e Raça Negra são alguns dos artistas revelados naquela década que mantêm carreiras sólidas.

Para Mumuzinho, no fundo, a rejeição da imprensa ao pagode era “uma mistura de elitismo e preconceito social”. “O som vinha das periferias, feito por artistas negros, e falava de amor, alegria e cotidiano — tudo o que a crítica ‘séria’ não levava a sério. Hoje, ironicamente, é justamente isso que faz o pagode 90 ser lembrado com tanto carinho”, argumenta o sambista.

As redes sociais tiveram um papel praticamente central para essa transformação. Elas permitiram que o público visse o pagode e o samba de um jeito mais contemporâneo

Camila Arias, gerente de marketing da Warner Music Brasil

A tese encontra eco na realidade: durante décadas, o jornalismo musical foi dominado por pessoas (sobretudo homens) brancas de classe média e classe alta. Com as cotas nas universidades, pouco a pouco esse perfil vem dando lugar a redações mais diversas. “Hoje a imprensa reconhece o que o público nunca deixou de acreditar. O povo sempre abraçou o pagode, e, quando o povo segura, não tem como a história ignorar”, resume Mumuzinho.

“Acho que hoje há mais entendimento sobre a importância cultural do samba e do pagode de forma geral, como um espaço de identidade, de representatividade, de coletividade”, constata Camila Arias. “Essa revisão histórica veio com uma geração de jornalistas e formadores de opinião que estão mais abertos à mistura do popular com o sofisticado, do antigo com o novo. É uma galera que não fica só fechada em um gênero”, conclui.

MISTURA DE GÊNEROS

Essa abertura também está presente entre os próprios artistas, que hoje trafegam muito mais entre os estilos musicais do que no passado, seja incorporando novas sonoridades em sua música, seja fazendo parcerias com nomes de outros ritmos. O veterano Zeca Pagodinho, por exemplo, gravou recentemente uma música com os sertanejos Edson & Hudson e outra com Bruno & Marrone. Ele também acaba de participar do DVD ao vivo de João Gomes, ídolo do piseiro, e vai fazer um feat com Falcão. “Vamos embora, vamos embora. Tem que misturar, brasileiro é uma mistura. Música é festa”, defende ele.

Mumuzinho também aposta na união do samba e do pagode com outros estilos. Seu projeto audiovisual “Conectado”, lançado no ano passado, traz influências do sertanejo e, além de grandes nomes do pagode, conta com participações do funkeiro MC IG, da cantora de forró Michele Andrade e da dupla sertaneja Felipe & Rodrigo. “Aprendi muitas coisas com o Arlindo Cruz, dentre elas tocar e cantar qualquer gênero musical”, diz o artista. “Isso ele sabia fazer com maestria. Eu me lembro de quando ele se juntou com o Marcelo D2, eles misturaram o samba e o hip hop, e foi um grande sucesso.”

Diogo Nogueira é outro que defende o namoro da batucada com sonoridades diferentes. “A música é arte, viva e livre. Essas iniciativas são inovadoras e estimulantes para o futuro da música. Desde que feito com muita responsabilidade, claro, para não perdermos a essência do nosso samba, o tradicional, que é tão brasileira, tão legítima”, pondera ele. “E, especificamente no caso do rap e do trap, acho que ainda tem um significado ancestral nisso: são gêneros de origem negra e periférica, assim como a essência da célula samba. Acho que isso ajuda a aproximar gerações diferentes dentro da música brasileira.”

BEM-VINDAS TODAS AS VOZES

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Mariene de Castro: mulher no samba, ocupando um espaço ainda predominantemente masculino

Esse “boom” do samba e do pagode também vem levando artistas associados a outros gêneros musicais a fazer incursões pelo batuque. Ludmilla foi a primeira, com seu projeto “Numanice”, que já rendeu um EP, dois álbuns de estúdio e três ao vivo, com as respectivas turnês lotando Brasil afora. Em seguida, foi a vez de Gloria Groove, com o álbum ao vivo e show “Serenata da GG”, lançados no ano passado. Também de 2024, o projeto “PaGGodin”, de Leo Santana, é outra aposta no pagode (não o baiano, gênero do artista, mas o romântico). Por fim, Ivete Sangalo acaba de dar o pontapé inicial na turnê “Clareou”, nome de seu disco ao vivo homônimo, dedicado ao samba e ao pagode — o título é uma referência à cantora Clara Nunes.

Karinah vê essas investidas com bons olhos. “O samba é um gênero musical que está presente na vida do brasileiro em alguma parte da vida. Muitos artistas, como a Ivete, que estão fazendo projetos de samba, trazem consigo a sua verdade”, analisa a cantora.

Diogo Nogueira também celebra esses namoros. “Ter esses grandes artistas cantando o samba e pagode ajuda a trazer evidência para os gêneros e os coloca em destaque. Levando em consideração que eles foram tão discriminados no passado, ajuda ainda mais a popularizar”, acredita.

VEIO PARA FICAR

Fica claro que o samba e o pagode estão de novo “na moda”. Mas há quem ache que esses dois gêneros, tão fundamentais para o cancioneiro popular nacional, estão além desses ciclos que afetam outros ritmos.

“A gente já viu o piseiro bombando, a pisadinha, o arrocha, o brega, o forró, são fases: o gênero sobe, tem uma popularização, depois tem uma queda, e o sertanejo volta. Mas eu acho que com o pagode vai ser diferente, assim como o samba. É uma era que veio para ficar, não vai acabar tão cedo. A tendência é só aumentar e se tornar cada vez mais trilha sonora do Brasil, até porque isso daí é a nossa identidade”, arrisca Camila Arias.

Sobretudo porque os passos de quem se dedica ao batuque vêm de longe.

“Esse bom momento é fruto de muito trabalho, de resistência e de amor. Nomes como Alcione, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Dudu Nobre, Belo e Arlindo Cruz são alguns dos muitos artistas, compositores e músicos que, lá atrás, abriram caminho para que hoje a gente pudesse viver essa fase de reconhecimento e crescimento”, lembra Mumuzinho. “O mais importante é continuar valorizando a nossa raiz. O samba e o pagode se reinventam, sim, mas sempre com o coração no mesmo lugar: no povo.”

AO VIVO É MAIS GOSTOSO

Outro fenômeno que vem marcando a ascensão da batucada é o sucesso de eventos de pagode em um formato consagrado pela “Tardezinha”, de Thiaguinho: palco 360 graus em espaços grandes, como estádios e ginásios, longa duração e diferentes convidados a cada edição. O show já atraiu mais de 600 mil pessoas desde sua criação, há dez anos, e deu origem a uma série documental, lançada em 2020 na Globoplay. Outros exemplos bem-sucedidos no formato são o “Numanice”, de Ludmilla; a “Resenha do Mumu”, de Mumuzinho; e a “Grande Roda”, de Diogo Nogueira.

O formato tem tudo a ver com a chamada era da experiência — expressão criada pelos pesquisadores Joseph Pine II e James H. Gilmore —, que defende que hoje não basta oferecer produtos e serviços: é preciso oferecer experiências memoráveis e que gerem conexões significativas aos consumidores.

“Não são só shows: você vai pela atmosfera, pela narrativa, para fazer parte, ter um pertencimento. Essas festas contribuíram muito para essa popularização [do pagode], tanto que a gente vê várias labels hoje em dia. Elas ajudaram o pagode a se reposicionar como um dos sons mais relevantes do país atualmente”, opina Camila Arias, da Warner Music Brasil.

Mumuzinho acredita que um dos segredos do sucesso dos eventos do tipo é o clima de encontro entre amigos. “A galera vai para se divertir, cantar, se emocionar, lembrar boas histórias”, aposta. “Outro ponto é que esses eventos resgataram o sentimento de comunidade que o samba sempre teve. É um ambiente leve, onde todo mundo se sente parte do show. E, quando o público sente isso, vira uma experiência, não só um espetáculo”, explica.

Ontem, hoje e sempre: a partir da esquerda, Ivone Lara, Beth Carvalho, Nelson Cavaquinho, Elza Soares, Mumuzinho, Jorge Aragão, Cartola, Tia Ciata
Ontem, hoje e sempre: a partir da esquerda, Ivone Lara, Beth Carvalho, Nelson Cavaquinho, Elza Soares, Mumuzinho, Jorge Aragão, Cartola, Tia Ciata
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