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PL dos

Conexos:

o desafio da garantia de direitos na era do streaming

Proposta em tramitação no Senado pretende fazer com que as plataformas digitais se adequem à lei brasileira

por_Kamille Viola do_Rio

Proposta em tramitação no Senado pretende fazer com que as plataformas digitais se adequem à lei brasileira

por_Kamille Viola do_Rio

Tudo começou lá no início dos anos 2000, quando a empresa estadunidense Apple lançou o iPod, um aparelho para reprodução de mídia digital. Aquele pioneiro dispositivo tinha um problema de base: se a música fosse simplesmente baixada de graça, como vinha sendo feito via torrent e plataformas como o Napster naqueles tempos, a empresa seria corresponsabilizada por crimes contra a lei de direito autoral. A Apple, então, fez um acordo de licenciamento das músicas com a indústria fonográfica: 30% dos valores dos então downloads ficariam com ela própria, para cobrir despesas operacionais, e os demais 70% iriam para as gravadoras.

Esses acordos se tornaram o padrão da indústria e são aplicados até hoje no streaming, os chamados global deals. O diretor da Regulação de Direitos Autorais do Ministério da Cultura (MinC), Cauê Oliveira Fanha, afirma que, no entendimento das plataformas, os 70% repassados às gravadoras já incluem os pagamentos de todos os participantes dos fonogramas: autores, intérpretes, produtores e… músicos.

foto_Luis Benedito

Cauê Oliveira Fanha, diretor da Regulação de Direitos Autorais do Ministério da Cultura (MinC)

“Só que isso pode ser verdade nos Estados Unidos, porque lá eles não têm os direitos conexos (no streaming)”, explica. “No fonograma, só se paga direito autoral ao compositor (e às editoras). Para os intérpretes e músicos, o valor recebido vai depender do contrato do artista com a gravadora, que é quem detém os royalties.”

A legislação brasileira funciona de forma diferente, mas, com os acordos em vigor atualmente, ela vem sendo desrespeitada.

O Projeto de Lei nº 4968/2024, em tramitação no Senado, tem como objetivo alterar a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998), obrigando as plataformas de streaming a se adequarem à lei brasileira. A ideia é modificar o acordo em vigor atualmente para que intérpretes e músicos tenham direito a uma remuneração que independa de contratos com as gravadoras, inalienável e irrenunciável — como acontece, atualmente, com a música que é executada nas rádios, por exemplo.

“O projeto foi apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) e tem como relator o senador Eduardo Gomes, do PL. Isso ilustra bem como é um tema que perpassa diferentes ideologias, mostra a sensibilidade que o Senado tem demonstrado com o tema, porque a indústria criativa é muito grande no Brasil, são mais de 3% do PIB”, descreve Oliveira Fanha.

O PL também propõe a regulação da comunicação com o público na internet em consonância com a decisão Oi FM. Em 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu a favor do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) em um recurso que tratava da cobrança de direitos de execução pública da Oi FM via internet. O órgão exigia pagamento pela retransmissão nas modalidades webcasting e simulcasting, por considerar que se tratavam de execução pública. No simulcasting, o programa é transmitido simultaneamente com o estabelecido pelo provedor de serviço, ou seja, conforme a programação da rádio. No webcasting, o conteúdo é disponibilizado via internet, dando a possibilidade de escolha e interferência do usuário. Prevaleceu, portanto, o entendimento de que a execução de músicas pela internet é pública.

Outros pontos importantes do projeto são as obrigações de transparência aos provedores de serviços e de combate ao jabá digital e aos impulsionamentos por bots. “O artigo 5º, inciso XVII B da Constituição Federal prevê que os autores têm o direito de fiscalizar o aproveitamento econômico das obras deles. Mas hoje isso não ocorre, porque ele recebe do streaming um relatório genérico. Para um artista que concentra várias fases da cadeia nele mesmo, por exemplo — ele tem uma produtora e uma editora também —, não vem discriminado qual pagamento é relativo a quê”, exemplifica o diretor da Regulação de Direitos Autorais do Minc.

DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL

Atualmente, 69% da receita do consumo de música no mundo vem do streaming. Porém, desse montante, 30% ficam com as plataformas, 58% com as gravadoras, 9% com as editoras e 3% com os autores, enquanto intérpretes e músicos não têm porcentagem nenhuma (embora os intérpretes do mainstream, em geral, consigam negociar valores com as gravadoras). “O valor que os artistas recebem é irrisório. A gente viu aí o Ivan Lins reclamando. Recentemente, foi divulgado que a Angela Ro Ro recebia R$ 800 de direitos autorais. Isso para alguém que é um ícone da nossa música. Existe um desequilíbrio muito evidente nas relações entre as partes, e isso está prejudicando o ecossistema inteiro”, analisa o especialista do MinC.

Para a professora da Faculdade de Direito da UFRJ e da Academia do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), Kone Furtunato, as big techs não têm interesse em mostrar como os dados são usados. Por isso, deverão bombardear os capítulos do PL que protegem a criação humana usada para treinar os sistemas — atualmente sem qualquer regra ou pagamento.

A pandemia da Covid-19 evidenciou a precariedade na cadeia produtiva da música, já que, ao se verem impedidos de fazer shows, muitos viram sua renda cair drasticamente. “A importância do direito autoral e essa lacuna no sistema atual ficaram mais evidentes. Ainda mais no caso dos músicos, porque eles não recebem nada do streaming. E, geralmente, até o melhor artista do mundo precisa de um músico com ele. Então, para não ficar dependendo de arranjos pontuais, é melhor ter uma solução estrutural, que é o que a gente entende que o PL vai trazer”, defende Cauê Oliveira Fanha.

O projeto de lei requer ainda a exclusão dos produtos gerados por IA com participação mínima ou nula de seres humanos no cálculo de remuneração, o que impede a diluição do valor a ser pago aos titulares do direito de comunicação ao público no ambiente digital.

“A música hoje é um ambiente muito frágil, que, com a inteligência artificial, vai ficar mais difícil ainda. Essa regulação dos conexos tem a sua relação com a regulação da IA. Embora sejam discussões que devam ocorrer separadamente — existe o Projeto de Lei 2338/23, que regulamenta o uso da inteligência artificial no país —, elas estão vinculadas, a gente precisa avançar nessas duas áreas”, argumenta o especialista. “Os artistas precisam do incentivo econômico para continuarem produzindo, de uma remuneração mais justa, que reconheça a importância do trabalho deles.”

Três perguntas para Sydney Sanches, assessor jurídico da UBC

Como vê o PL dos Conexos? Quais as principais vantagens que sua aprovação traria para intérpretes e músicos?

O PL 4868/2024 conceitual e filosoficamente é bem-vindo e importante para consolidação, em especial, dos direitos de intérpretes e músicos, pois assegura uma remuneração obrigatória a esses titulares quando suas interpretações são disponibilizadas pelas plataformas digitais e sujeitas à comunicação pública no ambiente digital. Hoje, músicos vêm sendo preteridos desses direitos, e o PL procura restaurar essa distorção, assegurando remuneração a todos os titulares de direitos, sempre que houver comunicação pública de suas interpretações e execuções. O PL também assegura remuneração aos roteiristas, diretores e atores de obras audiovisuais, que hoje estão isolados dessa remuneração quando as obras audiovisuais são comunicadas ao público e/ou reutilizadas por terceiros.

Os artistas precisam do incentivo econômico para continuarem produzindo, de uma remuneração mais justa, que reconheça a importância do trabalho deles.

Cauê Oliveira Fanha

Por outro lado, o PL precisa de aprimoramentos conceituais, como assegurar a prevalência do princípio do tratamento nacional, conferindo a titulares nacionais e estrangeiros os mesmos direitos, por se tratar da tradição da gestão coletiva brasileira na proteção de direitos intelectuais, evitando a debilidade na cobrança; excluir da definição de comunicação pública a obrigatoriedade de efetiva fruição das obras artísticas e produções, o que significaria um retrocesso normativo, quando a jurisprudência consolidada e a Lei de Direitos Autorais consagram a comunicação pública como ato de pôr à disposição do público, independentemente de sua fruição; e, finalmente, o PL não poderá afetar as conquistas havidas pelos titulares de direitos de autor (autores de obras musicais e editores), que lograram alcançar a cobrança dos direitos de execução pública no ambiente digital perante plataformas digitais de conteúdos musicais e as de conteúdos audiovisuais, por meio do exercício de seus direitos exclusivos.

Como enxerga o clima político em torno dele?

Em relação ao momento político, identifica-se resistência para tramitação do PL, pois o tema afeta interesses de produtores fonográficos e audiovisuais, plataformas digitais, empresas de radiodifusão e empresas de tecnologia, que serão impactadas com a reforma da LDA. Ademais, os temas envolvendo a regulamentação do ambiente digital, de qualquer natureza, vêm sofrendo com a polarização política existente no Congresso, o que tem causado ações de bloqueio e retardamento do debate público e a aprovação dos projetos propostos. Creio que neste ano não teremos a votação do PL e, no próximo ano, que será um ano eleitoral, a tramitação e deliberação do PL tende a ser impactada, com a postergação de sua deliberação.

Atualmente, qual o maior desafio na defesa dos direitos do autor no streaming?

Creio temos desafios importantes: melhorar a remuneração dos autores e titulares de direitos autorais; aprimorar os processos de transparência, inclusive nos critérios de disponibilização das obras e fonogramas; combate aos conteúdos inautênticos e ilegais, indevidamente impulsionados remotamente, desviando valores e os direitos de obras e produções legítimas; e os desafios/prejuízos da concorrência desleal de conteúdos musicais gerados por IA.

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Sydney Sanches, durante a cobertura de um evento internacional pela UBC
Sydney Sanches, durante a cobertura de um evento internacional pela UBC
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