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Neurodivergentes

na música:

maioria silenciosa?

Poucos são os estudos sobre o tema, mas um deles sugere que até 58% dos profissionais do setor têm condições como autismo e déficit de atenção e hiperatividade

Evento na Holanda joga luz sobre uma questão que, pouco abordada, condena milhões à ansiedade e à (errônea) sensação de estarem sós

por_Alessandro Soler de_Amsterdã

Poucos são os estudos sobre o tema, mas um deles sugere que até 58% dos profissionais do setor têm condições como autismo e déficit de atenção e hiperatividade
Evento na Holanda joga luz sobre uma questão que, pouco abordada, condena milhões à ansiedade e à (errônea) sensação de estarem sós

por_Alessandro Soler de_Amsterdã

Autismo, déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), dislexia, discalculia: são várias as condições que caracterizam as pessoas tidas como neurodivergentes, em oposição às demais, chamadas de neurotípicas. Estatísticas em diferentes países estimam ser de 15% a 20% o total de neurodivergentes na sociedade — ou até 1,4 bilhão de pessoas mundialmente. Na música, há indícios de que o percentual pode ser bem maior.

A dislexia é um transtorno específico de aprendizagem que afeta principalmente as habilidades de leitura e escrita. Pessoas com dislexia podem ter dificuldade para decodificar palavras, reconhecer padrões de escrita, organizar ideias em texto ou ler com fluência, mesmo tendo inteligência média ou acima da média. Já a discalculia se refere ao processamento numérico e à compreensão de conceitos matemáticos. Pode afetar operações básicas, percepção de quantidade, noção de tempo, leitura de gráficos ou a capacidade de estimar distâncias/medidas. Assim como a dislexia, não é causada por desatenção ou falta de estudo, mas por uma diferença estrutural na forma como o cérebro lida com números.

Cérebros diferentes não são defeitos a serem corrigidos, mas expressões legítimas da diversidade humana. Ainda assim, a maneira como ambientes de trabalho, rotinas e expectativas profissionais são estruturados pode facilitar ou dificultar imensamente a participação plena dessas pessoas na indústria da música.

Não há dados suficientemente abrangentes sobre o tema na literatura médica e científica. Um relatório de 2022 da AFEM (associação global de música eletrônica) trouxe a cifra de 58% de neurodivergência entre os profissionais da música. Dessas, 38% teriam inclusive um diagnóstico clínico, sugerindo um quadro de subdiagnóstico ou de dificuldades de acesso a avaliações formais. Embora 79% dos respondentes tenham afirmado estar cientes do tema, e 70% tenham “ouvido mais sobre neurodiversidade recentemente”, só 55% disseram entender bem o que ela significa. Um percentual que despenca para 24% entre pessoas neurotípicas.

Embora seja um dos mais citados, esse estudo (“Neurodiversity Survey & Report”, parceria da Afem com a consultoria Audience Strategies) tem um problema de base importante: sua amostragem é pequena, apenas 137 profissionais, a maioria do Reino Unido e dos EUA — e todos eles de um gênero específico, a música eletrônica de pista. No Brasil, simplesmente não há dados similares, embora alguns estudos sobre educação musical para crianças autistas e com TDAH mostrem percentuais superiores a 50% de pequenos neurodivergentes com altas habilidades musicais.

“Quando eu tinha 8 anos, uma médica de saúda da família começou a identificar alguns sinais em mim e trouxe esse assunto. Foi muito complicado porque, além de ser de uma família itinerante e missionária, era também periférica. Quando você vive a desigualdade na pele, não tem tempo para estar dentro do espectro (autista)”, conta à Revista Kell Smith, associada diagnosticada tardiamente, já adulta, com autismo.

O caso dela é um bem acabado exemplo da dificuldade de dar nome à incomodidade, à sensação de não pertencer, que acompanha muitas pessoas divergentes ao longo do seu processo de autodescoberta. Uma jornada frequentemente marcada por dor — algo que, não raro, também permeia a criação artística.

“Meu hiperfoco é a música, e isso me ajudou muito. Tive uma infância marcada por muito bullying na escola e a sensação de ser um alien, um monstro. A música me salvou de mim, da falta de conhecimento, da falta de conhecimento do diagnóstico. Finalmente saber o que eu tenho foi o início de tudo, não o fim da linha. Está sendo muito especial”, completa Kell.

Antes eu achava que era apenas diferente. Ia a um evento em que tinha que conversar com estranhos e voltava para casa esgotada. Participei de songcamps torturantes.

Lady V, compositora inglesa vencedora de um Grammy

UM ENCONTRO SENSÍVEL E ABERTO NA HOLANDA

Em outubro, durante o ADE - Amsterdam Dance Event, na capital holandesa, um painel promovido pela sociedade de gestão coletiva musical local, a BumaStemra, em parceria com a Cisac - Confederação das Sociedades de Autores e Compositores, ajudou a jogar mais luz sobre o tema. Reunindo pessoas neurodivergentes de diferentes áreas da indústria, a conversa trouxe uma abordagem sensível e muito aberta para um tema quase sempre cercado de tabus e sombras.

Uma das mais vocais naquela tarde chuvosa de outono foi a compositora britânica Victoria Horn, também conhecida como Lady V. Autora de canções para nomes como Enrique Iglesias Demi Lovato e David Guetta, e vencedora de um Grammy em 2002, ela, que descobriu há anos estar dentro do espectro autista, falou sobre o seu hiperfoco na hora de criar e sobre como considera um superpoder a sua maneira tão própria, tão “torcida”, de construir a realidade ao redor.

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foto_Alessandro Soler
Pessoas participam do painel sobre neurodivergência na música, durante o ADE, em Amsterdã
Pessoas participam do painel sobre neurodivergência na música, durante o ADE, em Amsterdã

Outra criadora neurodivergente presente, a cantora e compositora holandesa nascida em Curaçao Kris Berry disse ainda estar vivendo um processo em busca de um diagnóstico final, embora tenha mencionado que a condição que a afeta é o TDAH. Saber-se neurodivergente, para ela, é libertador.

“Pessoas neurotípicas não falam muito sobre essas questões, costumam ter medo. O neurodivergente não tem. Ele sabe que é diferente, e falar sobre isso ajuda a encontrar outras pessoas como nós, a não nos sentirmos mais tão sós”, afirmou. “Venho do mundo corporativo, a música entrou relativamente tarde na minha vida. Nunca foi uma chorona sensível, aprendi a esconder minhas emoções. Mas meu noivo me ajudou a ver certos traços obsessivos em mim, me estimulou a procurar um diagnóstico e me acompanhou com muita empatia e carinho.”

Kell também teve a sorte de contar com ajudas variadas ao longo de seu processo. Seus fãs sempre se mostraram um apoio sólido. E a equipe que a cerca a protege de gatilhos e situações que poderiam derivar em estresse no dia a dia da carreira.

“Com todo esse cuidado, posso viver do meu hiperfoco, que é a música. Faço músicas reais para pessoas reais. Criei esse lugar, que é tão nosso, para a gente pertencer. Faço diversas adaptações para a estrada, luz, sons, a minha equipe me cuida muito. Essa condição, com prejuízos e superpoderes, faz parte de quem eu sou.”

Como ela, Lady V afirmou compartilhar um mesmo incômodo: as situações sociais em que precisa interagir com pessoas, falar com desconhecidos, fazer “networking”, algo tão esperado de quem milita na indústria musical:

“Antes eu achava que era apenas diferente. Ia a um evento em que tinha que conversar com estranhos e voltava para casa esgotada, querendo me esconder. Participei de songcamps que foram torturantes para mim. O pessoal da gravadora entregou a todos umas brochuras dizendo claramente o que esperavam de nós, resultados práticos, metas a cumprir, interações a ter. Dá até gatilho pensar, foi terrível de lidar. Hoje entendo que tenho uma maneira própria de criar, de interagir, e ter tido a oportunidade de conhecer meus limites e, hoje, poder respeitá-los é um privilégio.”

Também presente ao evento de Amsterdã, Anna Neale, diretora de relações com criadores da Cisac, compartilhou experiências parecidas. Como Kris, ela ainda está em busca de um diagnóstico definitivo após uma crise mental que teve com a chegada da menopausa.

CAMINHO LIBERTADOR

“A indústria exige habilidades sociais que nem todos tempos. Preencher formulários, seguir determinadas regras nos tempos esperados pelas pessoas, interagir com estranhos o tempo todo… Todas são regras fáceis para pessoas neurotípicas, mas não para nós”, afirmou. “Sei que sou diferente, mas tenho medo de continuar com meu processo (de diagnóstico), não sei aonde isso vai me levar.”

A BumaStemra, durante o painel, deixou claro estar muito atenta às dificuldades práticas de pessoas neurodivergentes com aspectos burocráticos da criação musical. Dispõe de equipes para ajudar os associados a preencherem formulários, a entenderem as regras da gestão coletiva e muito mais.

Outra entidade participante do painel, através de seu diretor Tjerk Feitsma, a Neurodiversity Foundation desenvolve uma série de iniciativas que impactam diretamente artistas neurodivergentes. Entre elas, o Neurodiversity Pride Day — que inclui ações artísticas e até maratonas de DJs neurodivergentes —, criando visibilidade e espaços seguros para talentos da música.

A fundação também oferece workshops, coaching, treinamentos e consultoria para ambientes mais neuroinclusivos, o que pode beneficiar estúdios, coletivos e festivais. Além disso, concede a bolsa Mikel Rijsdijk Grant, que apoia pessoas neurodivergentes no desenvolvimento de projetos, inclusive artísticos.

Kell Smith agradece pelo momento em que pôde dar nome ao que sente. E, hoje, tem como missão pessoal estimular outros a fazerem o mesmo, a compartilhar suas histórias e se aproximarem.

"Eu tinha muito medo de sofrer. Já tinha sofrido a vida inteira sem saber o que tinha, sem o nome. Agora tinha medo de sofrer com nome. Mas não foi assim. Essa viagem de descoberta tem me feito muito bem e tem feito bem aos que estão ao meu redor. Sou mãe de uma menina neurodivergente. E, hoje, sei que ela não está só. Esse mundo não foi feito para nós, precisamos fazer nossos próprios espaços. Mas tenho a possiblidade de criar um lugar… para mim e para ela.”

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Kell durante sua participação num programa de TV
Kell durante sua participação num programa de TV
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