por_Nathália Pandeló • do_Rio
O trabalho do compositor sempre esteve em um espaço delicado do mercado da música. Entre a criação artística e a necessidade de transformar ideias em contratos, muitos profissionais dependiam de editoras, gravadoras ou contatos pessoais para que suas músicas chegassem a artistas, produtores ou campanhas publicitárias. Esse modelo não desapareceu, mas vem sendo tensionado pela ascensão de plataformas digitais que oferecem um atalho: sites que prometem conectar, em poucos cliques, quem precisa de uma canção com quem pode escrevê-la.
De um lado, o fenômeno representa uma ampliação concreta de oportunidades, sobretudo para quem vive fora dos grandes centros ou não tem acesso direto às engrenagens da indústria tradicional. De outro, acende um alerta: até que ponto esses serviços funcionam como vitrines legítimas para talentos e quando passam a precarizar a criação musical, reduzindo-a a pacotes padronizados, disputas por preço e trabalhos sem crédito autoral?
PRAZOS CURTOS E BUY-OUT
O caso do SoundBetter, adquirido pelo Spotify em 2019, é emblemático. Voltada exclusivamente para o mercado musical, a plataforma se consolidou como vitrine para produtores e compositores do mundo todo. Reúne perfis com avaliações de clientes, lista de créditos junto a grandes artistas e espaço para demos. A lógica é a de que reputação e histórico atraem mais projetos, o que, em tese, garante remuneração melhor. O risco, no entanto, é o mesmo que se observa em outras áreas criativas digitais: a pressão por entregas rápidas e a imposição, na maioria dos contratos, do buy-out, a cessão integral de direitos, sem participação futura em royalties.
No Brasil, uma das principais referências de contratação de serviços pela internet é o GetNinjas, que incluiu a categoria de composição musical ao lado de áreas como aulas, design e consultoria. O interesse dos profissionais vem aumentando: segundo Pedro Nazareth, diretor Comercial e de Novos Negócios do GetNinjas, houve “aumento de 33,75% de maio a agosto” no número de compositores e letristas cadastrados.
O problema não está no modelo de intermediação em si, mas na falta de proteção jurídica. Independentemente do meio utilizado, é essencial garantir que os direitos autorais e os acordos estejam devidamente resguardados.”
Thaís Diniz, advogadaO modelo de funcionamento é simples. Não há comissão sobre os serviços fechados: todo o valor negociado entre cliente e profissional fica com o compositor. A remuneração da plataforma vem exclusivamente da compra de moedas virtuais, em pacotes que começam em R$ 69,90 (com 500 créditos), utilizadas para liberar o contato de clientes. A partir daí, a negociação ocorre diretamente entre as partes.
“O processo é projetado para ser direto e eficiente. É como se a plataforma fosse um mercado de oportunidades, onde você, como profissional, tem o poder de escolher os projetos que mais te interessam. Você adquire um pacote de moedas no aplicativo. Essas moedas são a sua ‘chave’ para acessar os pedidos”, diz Nazareth.
SEM CONTRATO GARANTIDO
Nem todos os sites seguem a mesma lógica. O Verse-Chorus, por exemplo, se apresenta como uma comunidade internacional de compositores, músicos e letristas. A proposta é criar perfis, disponibilizar letras e melodias e procurar parceiros de coautoria ou mentoria. Brasileiros como Marcio José Jak, de Cantagalo (PR), Anderson Verso, de Natal (RN), e Raissa Santos, de Catu (BA), utilizam o espaço para buscar colaborações e aprender com outros usuários.
Nesses casos, muitas vezes não há pagamento envolvido. O que está em jogo é a chance de construir uma rede, amadurecer composições e encontrar parceiros de longo prazo. Essa liberdade, no entanto, também traz riscos: sem contratos formais, as ideias circulam sem definição clara de autoria, e a possibilidade de disputas futuras é real.
Outro modelo é o do Twine, que funciona como um grande mural de empregos criativos. Os clientes publicam seus projetos, que vão desde canções educativas para crianças até jingles corporativos, e freelancers do mundo todo se candidatam. Em um mesmo dia, é possível ver um pedido de US$ 5.000 para músicas infantis na Nigéria, um job de música publicitária na Índia e uma vaga para compor em holandês no mercado europeu.
Para brasileiros, a possibilidade de disputar projetos globais pode ser atraente, mas vem acompanhada da pressão por preço. Os orçamentos variam, e nem sempre os contratos especificam créditos autorais ou cessão de direitos com clareza. A competição é massiva, e a regra implícita é se diferenciar pela velocidade, pela flexibilidade ou pelo valor mais baixo, uma equação difícil de sustentar a longo prazo em um mercado que depende de tempo criativo.
EXPORTAÇÃO DA MPB
O AirGigs leva o modelo de marketplace um passo adiante. Em vez de depender de anúncios de clientes, são os próprios compositores que criam “gigs” pré-formatados, oferecendo pacotes fechados de serviços: “hit pronto em sete dias”, “ghostwriter bilíngue de reggaeton” ou “canção exclusiva de MPB e bossa nova por US$ 150” . A promessa é clara: previsibilidade para quem compra e visibilidade para quem vende.
Nesse ambiente, artistas brasileiros encontraram espaço para oferecer produtos que carregam identidade cultural. É comum ver anúncios de MPB, samba ou bossa nova direcionados ao mercado externo. A vitrine internacional é real, mas os riscos também: a padronização dos pacotes transforma a criação em produto escalável, e a recorrência de ofertas de ghostwriting indica a prevalência de trabalhos sem crédito público, em que o compositor abre mão de qualquer vínculo com a obra.
Mais popular e abrangente, o Fiverr inclui composição musical em meio a milhares de categorias de serviços, do design ao marketing digital. O lema é explícito: “um ‘trampo’ é contratado a cada quatro segundos”. Nesse espaço, a música se torna apenas mais uma peça em um gigantesco mercado de freelances.
Os preços oscilam bastante, indo de R$ 57 a mais de R$ 1.400, com ofertas de composição de letras em português e inglês, ghostwriting em pop e R&B, beatmakers e cantores que entregam vocais já mixados... A escala é gigantesca, e os brasileiros aparecem em grande número: Constança Q. Se anuncia como “songwriter em português ou inglês” a partir de R$ 142; Rodrigo Bravo oferece serviço multilíngue em português, inglês e espanhol, cobrando valores mais altos; Bruna Wesch se anuncia como “ghost singer e songwriter” de pop e R&B por R$ 453.
A facilidade de entrada é evidente, mas a concorrência global pressiona por preços baixos. Nesse contexto, a composição se aproxima cada vez mais de uma commodity, em que rapidez e custo se sobrepõem à singularidade criativa.
CONTRATOS PERSONALIZADOS
Por fim, o Upwork ocupa uma posição mais corporativa. Em vez de pacotes fechados, os contratos costumam ser personalizados, e a plataforma valoriza métricas como o Job Success Score. Perfis brasileiros ilustram bem a diversidade: Joel J. fatura em média US$ 20/h com trabalhos de composição e arranjo; Gabriel M. atua como especialista em edição e remix no Ableton Live; Simon K., com mais de US$ 100 mil recebidos declarados, produziu para marcas como Sony, Nespresso e Smirnoff; e Lucila B., com trajetória em dublagem e trilhas infantis, diz somar US$ 60 mil de faturamento.
Os valores praticados costumam ser mais altos, mas a lógica é a do trabalho sob encomenda: entrega e pagamento, sem vínculo posterior de autoria ou participação em royalties.
A advogada Thaís Diniz, especialista em Entretenimento Musical e sócia da RIÚ Jurídico, explica que a negociação entre compositores e clientes não é algo recente, e que as plataformas de intermediação apenas representam um novo meio para uma prática antiga no mercado.
“Do ponto de vista jurídico, os riscos continuam sendo basicamente os mesmos e surgem, em geral, quando não há o devido cuidado com a parte legal das relações”, afirma.
Segundo ela, esses cuidados passam por três pontos principais: formalizar claramente os acordos entre compositores, ler atentamente as regras das plataformas e ter cautela na assinatura de contratos.
“O problema não está no modelo de intermediação em si, mas na falta de proteção jurídica. Independentemente do meio utilizado, é essencial garantir que os direitos autorais e os acordos estejam devidamente resguardados.”
Algumas práticas básicas para evitar problemas são possíveis e relativamente simples. Entre elas está registrar coautorias em split sheets, formalizar contratos de cessão ou crédito, evitar trabalhos especulativos indefinidos e guardar evidências do processo criativo. Em tempos de inteligência artificial, é indispensável deixar claro, em contrato, quem assume a responsabilidade sobre originalidade e autoria. Também é importante cadastrar a obra em sociedades de gestão coletiva.
Para Thaís Diniz, o principal cuidado é nunca abrir mão do reconhecimento da autoria. “No Brasil, esse direito é irrenunciável, mas em outros países pode haver brechas. Mesmo em plataformas digitais, é possível se proteger registrando quem são os autores, o que foi criado e como a obra poderá ser usada”, orienta.
A advogada acrescenta que, ainda que o registro não seja obrigatório no país, ele ajuda na resolução de conflitos de forma justa. “Também é importante atenção aos valores combinados, forma de pagamento e optar por licenças com prazo, território e finalidade definidos. Em um ambiente global, a melhor defesa é a atenção aos detalhes e uma boa documentação.” •















