Entre a genialidade veloz e a simplicidade mineira, Lô Borges deixa um legado artístico real, destinado a influenciar ainda muitas gerações
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“Sou um pescador de canções”, disse Lô Borges durante uma entrevista com a UBC ano passado. Talvez não exista imagem mais justa para defini-lo. A música, para ele, era uma pescaria diária, um exercício de disponibilidade ao mistério. “Sento com o violão, e os sons vão saindo. É uma coisa mais Chico Xavier que cerebral (risos)”, explicou.
Nascido em Belo Horizonte em 1952, Salomão Borges Filho cresceu cercado de arte, mas nunca perdeu a simplicidade. Adolescente, descobriu os Beatles e o rock inglês. Logo começou a compor ao lado de Toninho Horta, Milton Nascimento, Beto Guedes e do irmão Márcio Borges. Desses encontros nasceu o Clube da Esquina, um dos movimentos mais originais da música brasileira, sintetizado num disco homônimo amplamente considerado dos melhores já lançados no nosso país.

Com Milton, numa foto sem data nos anos 1970
E foi com só 19 anos que Lô ajudou a compô-lo ao lado sobretudo de Milton. O nome do garoto saiu na capa, coassinando o trabalho com o já respeitado colega. Aquela mistura original de rock progressivo, jazz, música mineira e MPB revelou um compositor precoce em faixas como “Tudo Que Você Podia Ser”, “Cravo e Canela” e “O Trem Azul”. E que mostrou-se ainda mais polivalente e rápido quando criou, em poucas semanas, o álbum solo “Lô Borges”, o célebre “disco do tênis”:
“Aquilo ali foi uma experiência tão intensa que me marcou pra sempre. Eu já tinha gastado toda a munição que tinha no ‘Clube da Esquina’, era iniciante, pô! Compunha e gravava no mesmo dia. Foi uma loucura como nunca mais vivi.” Mas que o tornou o veloz pescador de versos e notas que passou a ser.
Lô, de fato, acreditava que as canções precisavam nascer rápido, quase de um fôlego só.
“Se a música demora mais de 30 minutos pra sair, já acho que não vai ficar boa (risos). Pego o iPhone, gravo, escuto, corrijo… E, dez minutos depois, já parto pra segunda gravação. Na terceira, está pronta”, sintetizou seu processo à UBC.
Essa leveza virou método — e talvez segredo — de uma carreira prolífica. Foram 24 álbuns (5 deles apenas nos últimos 5 anos), incluindo “A Via-Láctea”, “Nuvem Cigana” (com o 14 Bis), “Meu Filme” (com Caetano Veloso) e “Feira Moderna”. Mesmo quando estava longe da mídia, nunca deixou de criar:
“Acho que já fui um compositor compulsivo. Hoje vejo que é frequência, é estar disponível pra composição. É igual sair pra pescar: se não jogar a vara no rio, não vai pegar nada.”
FILARMÔNICA DE MINAS

Lô Borges
A fase de aceleração criativa mais recente começou com “Rio da Lua” (2019) e teve uma espécie de auge com um trabalho cocriado com a Filarmônica de Minas Gerais.
“Foi uma grande realização pra mim, fazer um concerto com 70 músicos. O maestro Fabio Mechetti esteve aqui em casa, e foi um processo de muito trabalho. Nunca tinha vivido algo assim”, descrevia, orgulhoso.
LIBERDADE COMO DESTINO
Mesmo com o reconhecimento internacional, Lô nunca deixou de viver de forma despretensiosa — e livre. “Adoro fazer shows, mas sou um cara da composição.”
Entre seus parceiros estiveram, claro, Milton Nascimento e também Márcio Borges, o irmão e coautor de tantos clássicos, além de Fernando Brant, Nelson Angelo, Makely Ka, Tom Zé, Arnaldo Antunes e Nando Reis. A música, para ele, era sempre espaço de descoberta.
A notícia de sua morte mobilizou homenagens de toda parte. O diretor-executivo da UBC, Marcelo Castello Branco, falou em nome da associação:
“A UBC lamenta profundamente a passagem de um de seus mais ilustres e queridos titulares, uma representação do poder e da beleza da música de Minas Gerais e sua influência para a música brasileira.”

O também mineiro Geraldo Vianna, diretor da UBC, expressou:
“Hoje o dia amanheceu triste e nublado. Partiu nosso querido Lô Borges. Pegou um ‘trem azul’ e foi em busca de outras paragens. Seus acordes e melodias seguem ecoando em nossas mentes e serão eternamente lembrados.”
Entre as muitas manifestações, aquela publicada no Instagram de Milton trouxe o peso da amizade de décadas:
“Lô Borges foi — e sempre será — uma das pessoas mais importantes da vida e obra de Milton Nascimento. O Brasil perde um de seus artistas mais geniais, inventivos e únicos.”
Na TV, o crítico Arthur Dapieve resumiu:
“Ele acrescentou um senso melódico fantástico às criações dele. Foi uma liga muito interessante com os outros membros do Clube da Esquina. Um talento espetacular, que ajudou a fazer um pequeno milagre na música brasileira.” •