Em “Lá Na Zárea Todos Querem Viver Bem”, Mateus Fazeno Rock afirma o “rock de favela” como linguagem de liberdade
por_Leonardo Lichote • do_Rio
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“Lá Na Zárea Todos Querem Viver Bem”, canção que abre e dá o título ao terceiro álbum de Mateus Fazeno Rock, é descrita pelo artista cearense como “uma série de pequenas fotografias”. Memórias sobretudo de sua infância em Sapiranga, periferia de Fortaleza.
“Cresci num contexto entre o rural e o urbano”, conta Mateus. “Tinha muita lagoa ao redor, o leite que eu tomava era do leiteiro que passava, a verdura era comprada de uma horta do bairro. Tenho essa memória, de um tempo bem mais simples, mas no qual a vida parecia melhor. A urbanização, indústria, mercado, avenida, shopping, essas coisas todas que vão surgindo, modificando a lógica de trabalho, foram diminuindo drasticamente a qualidade de vida. Juntei essas lembranças com outras, mais recentes, de amigos brindando felizes com copos de plástico… Fiz a música como uma oração.”

“Lá Na Zárea Todos Querem Viver Bem”, o álbum, é um manifesto por essa vida mais larga — equilibrado entre a exaustão e a esperança. Nele, Mateus consolida o conceito de “rock de favela” — expressão que define tanto sua origem quanto o modo como mistura gêneros com liberdade sem perder o eixo do peso. Produzido em parceria com Fernando Catatau e Rafael Ramos, o disco marca um passo no caminho que o levou a ser escolhido Artista Revelação pela APCA em 2023.
O termo “rock de favela” funciona como chave para entender a trajetória do artista.
“Eu vejo toda a minha obra, mesmo as que passam por outros ritmos, vinculada ao rock, porque ele foi minha primeira referência”, explica Mateus. “Mas o rock que eu via era muito limitado, rítmica e narrativamente. Então o rock de favela é o rock possível pra mim. O que me permite contar minha história, passear por ritmos de origem afrodiaspórica. É o espaço onde eu posso me conectar com minha essência pra cantar o que quero cantar.”
REIVINDICAÇÃO DO TEMPO
A ideia que move o álbum — o desejo de viver bem — nasceu de uma inquietação pessoal.
“Eu vim num período de questionamento sobre isso”, diz Mateus. “Essa afirmação de viver bem aparece muito nas narrativas, mas quase nunca responde à realidade da maioria das pessoas. Pra mim, viver bem tem a ver com o tempo, que virou artigo de luxo. Com acesso à natureza, à boa alimentação, à saúde. É poder cultivar memórias que não sejam só de correria, cansaço e luta. A vida de quem trabalha é feita disso. Então viver bem é poder ter um tempo que é negado pra muitos de nós.”
A favela é também, para o artista, um espaço riquíssimo de liberdade e experimentação. Um lugar aberto ao forró (“Inclusive existe um gênero chamado forró de favela”, nota ele), ao reggae, ao sarau, ao slam. E, claro, também ao rock.
“(O uso do termo rock de favela) é pra tensionar mesmo. O rock ficou muito conservador, e o que eu faço incomoda quem acha que pra ser do rock precisa negar a origem, a quebrada, o corpo negro. O rock de favela é meu jeito de ampliar o que esse gênero pode ser”, define.
A sonoridade do álbum reforça esse espírito de liberdade. Mateus fez a pré-produção sozinho em casa, aprendendo a trabalhar com o software Ableton Live, até que Catatau e Rafael Ramos se juntaram para finalizar o disco. O resultado mantém a crueza de seus trabalhos anteriores, mas com maior apuro técnico. O processo resultou em faixas como a sedutora “Daquilo Que Nois Merece”, parceria com Catatau e beat de Nego Célio, e “Saturno e a Intuição”, com ares de Jamaica.
LIBERDADE PARA COMPOR
Como a música que se ouve na favela, o modo de compor de Mateus também é marcado pela ausência de regras.

“Eu tenho mais indisciplina do que disciplina para escrever”, admite o artista, rindo. “Anoto frases no caderno, no celular, e às vezes escrevo textos sem ponto nem vírgula, só começo e fim. Algumas músicas nascem desses textos, outras de um riff que eu fico tocando por horas, repetindo até virar mantra. Acho que vem daí minha tendência à repetição nas letras.”
Os versos sustentam uma observação direta do cotidiano, saídos da caneta de um autor que se identifica como cronista. Mas não um observador neutro, senão como alguém completamente mergulhado no cenário que documenta:
“Me vejo no lugar de alguém que está contando a própria história. Não consigo nem muito separar os meus discos da minha história de vida, das minhas urgências pessoais e subjetivas.”
Entre essas urgências, o cansaço aparece como tema recorrente — e motor criativo: “É uma sensação que se modifica, mas se repete. A gente vive lutando pra construir o básico, pra alcançar uma estabilidade que nunca chega. Eu vejo isso nos meus pais, nos meus amigos. O cansaço é coletivo, é histórico. Então o disco nasce também desse desejo de trégua, de poder parar, respirar, viver um pouco do descanso que a vida sempre adia.” •
