Em primeira pessoa, Samuel Rosa comenta sua evolução de fã a parceiro do grande compositor mineiro, morto em novembro
por_Samuel Rosa • de_Belo Horizonte
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Corria o longínquo ano de 1983, era julho, mês do meu aniversário de 17 anos. Depois de uma pequena farra em casa para comemorar, vi-me rodeado de carinhosos presentes dos amigos de escola. E eu, àquela altura já integrante de uma bandinha de garagem, não titubeei, fui direto aos discos. Aliás, a um em especial, “Via Láctea”, de Lô Borges, recém-redescoberto, uma vez que, na infância, por conta do gosto apurado do meu pai, “Clube da Esquina” não saía da vitrola.
Mas agora era diferente, eu escutava música com ouvidos de quem já sabia alguns acordes. Foi como uma bomba a sensação que tive ao ouvir as primeiras notas da música “Equatorial”, de Lô, Beto Guedes e Márcio Borges. Como era possível? Algo tão refinado, num grau a fazer frente às principais bandas inglesas de rock psicodélico, e tudo isso criado por um cara que morava a poucos quarteirões da minha casa, nascido na mesma cidade e frequentador do Mineirão aos finais de semana, como eu. Pronto, estava tudo resolvido, era a personificação de que, sim, era possível fazer aquele tipo de música, de igual para igual aos “gringos”, mesmo cantando em português, sem soar pastiche ou paródia. Afinal, o que não faltava ali era alma brasileira, aliás, alma mineira.

Samuel e Lô em cena
Depois disso, tornei-me ainda mais fã, andava com discos debaixo do braço, não perdia nenhum show num raio de 50 km e sabia tocar as músicas no violão, o que já era uma baita aula. Lô Borges atingiu aqueles da minha geração e das que vieram depois por dois flancos. O primeiro foi esse, ser um modelo que apontava para a possibilidade real de viabilizar uma carreira musical e ser interessante aos ouvidos do Brasil e do mundo, mesmo não tendo nascido em Liverpool (Alex Turner, do Arctic Monkeys, que o diga). A segunda era sua música em si, complexa na construção harmônica, mas simples e direta aos ouvidos do leigo, mineira, com traços indeléveis de brasilidade, mas cosmopolita e universal. Escute “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, espécie de hino da contracultura brasileira.
E preciso dizer que Lô não era afeito ao jet set ou ao mainstream. Talvez por isso, na minha modesta opinião, tenha tido reconhecimento tardio por parte de alguns. Era desapegado e muito fiel a si próprio. E sabia rir daqueles que hoje batem palmas, mas que outrora desdenhavam sua arte, referindo-se a ela como mero som de “bicho-grilo”, produto de uma Belo Horizonte distante, regionalista e brejeira.
Impossível também, em se tratando do legado de Borges, não mencionar o “Clube da Esquina”, que citei no início, álbum que Lô assina junto a Milton Nascimento, hoje considerado por muitos um dos melhores discos já feitos na música popular mundial — surpresa nenhuma para quem teve, como eu, a sorte de passar dos discos infantis dos “Três Porquinhos”, como ele mesmo gostava de dizer nos shows que fizemos juntos, direto para essa obra-prima ainda em tenra infância.
DE FÃ A PARCEIRO
Tive a sorte e o privilégio de ter Lô como parceiro mais frequente na música, à parte, claro, as mais de três décadas com os amigos do Skank. Dividi com ele músicas, palcos e um disco ao vivo gravado em BH no ano de 2015. Essa convivência me valeu a definitiva mudança na forma de compor e de enxergar a música. Poucos são os artistas que lidaram com seu ofício com tamanha seriedade como fazia ele, compositor compulsivo, de trajetória invejável. Enfim, Lô soube ser inventivo e popular na medida certa, soube tratar sua própria arte com enorme cuidado e esteve imensamente produtivo, um disco de inéditas por ano, até os seus últimos dias.
Ao misturar seu enorme talento musical ao seu extremo interesse em criar, sem arredar o pé das montanhas de Minas, esteve atento ao que se passava a milhas de distância e revelou ser uma espécie de interface entre a MPB raiz e a música pop do mundo. Não por acaso, nos brindou com uma das mais belas escolas de composição da música brasileira contemporânea, reconhecida para além das fronteiras do país. Só nos cabe reverenciar e agradecer.
Comoção nas redes
A comoção pela despedida de Lô Borges mobilizou milhões de brasileiros nas redes, mostrou um monitoramento da Quaest. Nas primeiras 48 horas depois da sua morte, seu nome alcançou 4 milhões de pessoas e gerou mais de 56 mil menções.
Mais da metade (53%) das menções citam diretamente o repertório de Lô. O Clube da Esquina, com 37%, vem em seguida. Com milhares de visualizações, posts virais registraram homenagens a Lô na lendária esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, no bairro de Santa Teresa, onde se reuniam os músicos que criariam o disco e o movimento.
E até mesmo as canções mais emblemáticas do artista voltaram a viralizar, sendo as mais citadas “O Trem Azul”, “Um Girassol Na Cor do Seu Cabelo”, “Paisagem na Janela”, “Tudo Que Você Podia Ser” e “Cravo e Canela”.
Um pequeno retrato de uma produção mais do que profícua, e que acelerou no fim da sua vida. Se, nos anos 1970, foram três os discos lançados por Lô, com uma estabilização em dois discos por década nos 20 anos seguintes, nos anos 2000 foram quatro, nos anos 2010, seis; e, nos anos 2020, nada menos que sete álbuns novos. •
