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NA SAPUCAÍ

Carnaval carioca de 2026 trará enredos em homenagem a três grandes nomes da nossa música: Rita Lee, Ney Matogrosso e Heitor dos Prazeres

por_Kamile Viola do_Rio

Carnaval carioca de 2026 trará enredos em homenagem a três grandes nomes da nossa música: Rita Lee, Ney Matogrosso e Heitor dos Prazeres

por_Kamile Viola do_Rio

Rita Lee apelidou de “rock carnaval” alguns dos sucessos imortais que compôs ao lado de Roberto de Carvalho, como “Chega Mais”, “Lança Perfume” e “Banho de Espuma”, uma animada mistura de pop, rock, marchinha e disco music. Essa sonoridade, somada aos figurinos criativos e divertidos, às letras ousadas e à postura irreverente da cantora — dentro e fora do palco —, faziam dela uma figura com a cara da folia. Não à toa, Rita sempre expressou sua admiração por uma das maiores figuras carnavalescas do país, dizendo-se, com seu bom humor característico, uma “Carmen Miranda psicodélica”.

foto_Vania Toledo

Rita Lee

Não é de se surpreender, portanto, que a roqueira tenha inspirado o enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel para 2026, “Rita Lee, a Padroeira da Liberdade”. A homenagem à estrela é parte de uma tendência que ganhou força entre as escolas do Grupo Especial carioca nos últimos anos: os desfiles sobre grandes nomes da música brasileira. Em 2026, a Avenida também celebrará Ney Matogrosso, com o enredo “Camaleônico”, da Imperatriz Leopoldinense, e o sambista Heitor dos Prazeres, com “Macumbembê, Samborembá: Sonhei que um Sambista Sonhou a África”, da Unidos de Vila Isabel.

O tributo à cantora é parte de uma série de honrarias póstumas a ela e partiu de um convite da agremiação, que foi aceito por seu parceiro musical e viúvo, o guitarrista, compositor e produtor Roberto de Carvalho.

“A Rita mesma disse em uma canção nossa, ‘Nem Luxo Nem Lixo’, a frase ‘Meu sonho é ser imortal, meu amor’. Esse processo pelo qual estamos passando é orgânico, não se trata de uma estratégia de marketing, é uma continuação muito natural dos processos criativos que sempre existiram em nossas atuações. O tamanho da Rita é gigantesco, e é isso que exige e possibilita a continuação da presença dela, mesmo ‘impresente’”, pontua ele.

Mel Lisboa, que atualmente vive a cantora em um musical no teatro, dará vida à ruiva durante o desfile.

CONEXÃO COM O PASSADO

Antropólogo, doutorando em Antropologia e pesquisador do carnaval, Mauro Cordeiro observa que os tributos a grandes nomes da música brasileira no carnaval não são exatamente uma novidade. Ele lembra que o Império Serrano celebrou Ary Barroso com “Aquarela Brasileira”, em 1964 (anos mais tarde, a partir do sucesso da regravação de Martinho da Vila, em 1975, o samba-enredo se tornaria um clássico), e a Pequena Notável, com “Alô, Alô, Taí Carmen Miranda”, em 1972.

O tamanho da Rita é gigantesco, e é isso que exige e possibilita a continuação da presença dela, mesmo ‘impresente’.

Roberto de Carvalho

“Esse modelo foi se fortalecendo nos anos 1980. A gente teve três títulos do Grupo Especial naquela década baseados em homenagens. A Imperatriz vence em 1981, com Lamartine Babo, e a Mangueira leva dois campeonatos: em 1984, com Braguinha, e em 1986, com Dorival Caymmi”, enumera.

Historiador, mestre em História e pesquisador do carnaval, Luiz Antonio Simas considera que a Verde e Rosa tornou-se um marco nos desfiles-exaltação de ídolos da música brasileira. Ele arrisca uma tese para o fato de que a agremiação tenha passado a apostar nesse tipo de enredo. Até meados da década de 1970, o título era disputado por quatro principais agremiações: Mangueira, Portela, Império Serrano e Salgueiro.

“A partir daquela década, nós temos a ascensão de escolas que furam esse grupo, muito ancoradas, inclusive, no capital injetado pelo jogo do bicho: Beija-Flor de Nilópolis, Imperatriz Leopoldinense e Mocidade Independente de Padre Miguel. E as agremiações tradicionais mergulham em situações muito difíceis”, explica.

Ele conta que a Mangueira, por exemplo, passou a enfrentar muitas crises financeiras. “Nas décadas de 1980 e 1990, ela fez carnavais muito contundentes, mas muito longe dos desfiles ultraluxuosos que esse trio — Beija-Flor, Mocidade Imperatriz — começou a apresentar”, analisa Simas. “Naquela circunstância complicada, a Mangueira foi a primeira das grandes escolas de samba a adotar uma linha sistemática de enredo de homenagem a personagens importantes da música”, diz. De fato, de lá para cá, foram muitos os tributos a artistas da música na Verde e Rosa: ela festejou Braguinha, em 1984; Chiquinha Gonzaga, em 1985; Dorival Caymmi, em 1986; Tom Jobim, em 1992; Doces Bárbaros, em 1994; Chico Buarque, em 1998; Nelson Cavaquinho, em 2011; Maria Bethânia, em 2016; Cartola, Jamelão e o mestre-sala Mestre Delegado, em 2021; e Alcione, em 2024. Em quatro deles, sagrou-se campeã.

LAMARTINE, DALVA, CLARA, ELZA, GONZAGÃO…

Mauro Cordeiro lista diversos outros desfiles com temática semelhante. A Imperatriz Leopoldinense levou o primeiro lugar em 1981 com uma celebração a Lamartine Babo, enredo reeditado em 2010. Em 1987, a agremiação festejou Dalva de Oliveira. Já a Beija-Flor venceu em 2011 com uma apresentação dedicada a Roberto Carlos. A Portela apostou em Clara Nunes, em 1984 e em 2019, e em Milton Nascimento, em 2025.

A Unidos da Tijuca ganhou o título com um tributo a Luiz Gonzaga, em 2012. A Grande Rio dedicou seu carnaval a Ivete Sangalo, em 2017. A Mocidade reverenciou Elza Soares, em 2022. O portelense Zeca Pagodinho foi tema da apresentação da Grande Rio em 2023, mesmo ano em que o Império Serrano exaltou o imperiano Arlindo Cruz.

A Vila Isabel também apostou em pratas da casa: veio com Noel Rosa, em 2010 (embora a escola tenha surgido após a morte do compositor, ele está intrinsecamente ligado ao bairro onde a agremiação nasceu), e Martinho da Vila, em 2022.

O pesquisador lembra que as escolas de samba nasceram como conjuntos musicais. “Essa é uma dimensão que às vezes a gente perde de vista, pelo crescimento do espetáculo”, pontua. Por sinal, o primeiro concurso entre elas, antes da existência dos desfiles, foi vencido por uma composição de Heitor dos Prazeres — o homenageado da Vila Isabel em 2026 —, “Não Adianta Chorar”. Quem ganhou a competição foi o Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz, que mais tarde se tornaria a Portela.

“A primeira disputa entre as agremiações era uma competição de sambas. Estou falando disso para marcar o quanto a musicalidade é indispensável em qualquer compreensão de escola de samba. Isso ajuda a entender essa proximidade com o tema da música, os artistas da música. Num primeiro momento, aqueles do universo do samba e do carnaval. Conforme o desfile vai se tornando uma atração nacional, as escolas passam a assumir a responsabilidade de cantar o Brasil de uma forma mais ampla. E isso inclui tematizar artistas dos mais variados segmentos, das mais diversas regiões do país.”

MÃO DUPLA

Para as agremiações, umas das vantagens que as homenagens a esses grandes nomes trazem é o retorno midiático. Além disso, alguns artistas devolvem a honraria para a agremiação. Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia, por exemplo, voltaram ao palco juntos, depois de 18 anos da turnê do grupo Doces Bárbaros, em um show na quadra da Mangueira, que arrecadou fundos para a escola.

foto_Marcelo Faustini

Ney Matogrosso

Chico Buarque lançou o disco “Chico Buarque de Mangueira”, em 1997, com renda revertida para projetos sociais da Verde e Rosa, após ter sido anunciado como tema do carnaval da agremiação. No ano seguinte, ele foi uma das atrações do Show de Verão da Mangueira, que surgiu para angariar verba para o desfile em tributo a ele, com o qual a escola foi campeã, empatada com a Beija-Flor, coroando os 70 anos da escola de Cartola.

foto_Vania Toledo

Rita: carnavalesca por natureza

Desde então, Chico é figura cativa no espetáculo — que acontece todo ano, às vésperas da folia —, assim como Alcione. Já Maria Bethânia lançou o álbum “Mangueira — A Menina dos Meus Olhos”, com faixas de compositores ligados à Estação Primeira, em 2019.

Sim. Quero lançar ano que vem já um livro com ambiência numa Bahia do século XIX e outro mais autobiográfico, contando a história da axé music por meio da visão de um compositor do gênero. Ambos estão quase prontos e devem ser lançados até o ano que vem. Tenho outros em construção. Mas agora que o primeiro nasceu, não me prenderei mais à timidez ou adequações de fase de vida para lançar os próximos. Então, acredito que esse não será o único.

Os artistas escolhidos como tema de um desfile, por mais que estejam acostumados a serem reverenciados, se sentem muito lisonjeados com a honraria. No ano passado, Milton Nascimento afirmou, pouco antes de cruzar a Avenida como enredo da Azul e Branca de Oswaldo Cruz, que aquela era uma das noites mais importantes e simbólicas de toda a sua trajetória.

“Ser homenageado por uma escola como a Portela é a maior glória que um artista pode alcançar na vida", disse ele ao UOL. “Ser celebrado em vida por uma grande escola de samba, no espetáculo festivo mais importante do calendário nacional, também constitui um espaço importante na biografia desses artistas”, reitera o pesquisador Mauro Cordeiro.#Fref_bold#

O ARTISTA COMO EIXO TEMÁTICO

Em geral, as escolas escolhem entre dois caminhos ao fazer tributo a algum artista na Avenida. O primeiro deles é uma apresentação pelo viés biográfico, contando a história do homenageado. O outro é partir do nome exaltado como uma espécie de eixo temático para desenvolver algum assunto. “Essa tendência, hoje, é a que está com mais vigor. E, a meu ver, o marco dela é o título da Mangueira no carnaval da Maria Bethânia, em 2016. O [carnavalesco] Leandro Vieira foi o cara que, para mim, renovou o enredo biográfico. Ele trouxe outra perspectiva. O carnaval da Bethânia traz um enredo sobre a religiosidade brasileira tendo a trajetória e a carreira da artista como eixo para debater essas questões”, pondera Luiz Antonio Simas.

Para 2026, graças aos personagens eleitos pelas agremiações, as expectativas são altas. O carnavalesco da Mocidade, Renato Lage, conta que seu desejo de fazer um desfile sobre Rita Lee era antigo. “Já era uma vontade minha há algum tempo. Primeiro, porque eu sou fãzoca”, conta ele. “Ela tem essa coisa de ser ousada, transpor barreiras tradicionais, de ir contra a caretice. Carnaval é transgressão, e ela transgredia para caramba também. A Rita é muito irreverente, ousada, e o trabalho dela atravessa gerações. Ela tem a cara da Mocidade, que é uma escola voltada para a modernidade”, argumenta ele, que venceu três campeonatos na agremiação, para a qual voltou em 2024, após um hiato de 22 anos.

foto_Divulgação

Maria Bethânia desfila durante homenagem da Mangueira a ela, no carnaval de 2016

O enredo sobre Ney Matogrosso, uma escolha do carnavalesco Leandro Vieira, é outro muito aguardado. “Estou vivendo um momento único na minha vida. Nunca pensei em passar por isso. Confesso que no começo fiquei meio assustado, mas agora não estou mais. Agora já entreguei mesmo, e vamos em frente”, disse o cantor à Folha de S. Paulo em setembro, durante um ensaio na quadra Imperatriz Leopoldinense. “Acho que o Leandro imaginou fazer com o Ney algo parecido com o que ele fez com a Bethânia: tomar a trajetória do Ney para discutir uma série de questões”, arrisca Luiz Antonio Simas.

O sambista e pintor Heitor dos Prazeres, por sua vez, vinha sendo cogitado como enredo em diversas agremiações. Coube aos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, que estreiam na Vila Isabel, desenvolver a apresentação sobre o artista. Os dois, aliás, já haviam participado de uma exposição dedicada à obra dele, “Heitor dos Prazeres é Meu Nome”, no CCBB Rio de Janeiro, em 2023, com a instalação “Roda Gira”, criada ao lado de Jovanna Souza e Winnie Nicolau.

“Esse enredo faz parte de uma tradição das agremiações, que é contar histórias de grandes personagens negros”, reflete Mauro Cordeiro. “O Heitor é um personagem fundamental da cultura negra no Rio de Janeiro e no Brasil. Um compositor superimportante na formatação do samba moderno, o paradigma do Estácio, que vai gerar a escola de samba. Um dos grandes personagens da história do samba, e que também foi um artista plástico fundamental.”

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foto_Correio da Manhã/Arquivo Nacional
Heitor dos Prazeres
Heitor dos Prazeres

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